Escolhas

Escolhas

Por Marcos Danilo de Almeida

 

Vamos falar de morte? Talvez você não esperasse que esse texto começasse assim, mas vamos nos esforçar para que você seja recompensado (a) se decidir lê-lo até o fim. Sentimos a necessidade de demonstrar que a palavra morte não possui apenas uma acepção biológica, aliás, esse é o menor dos seus sentidos. Em sua essência morte é o afastamento de Deus, portanto, culpa de cada um em particular que se desvia Dele. E na contramão do entendimento popular, através do que é relatado acerca da vida de Enoque em Gênesis 5, gostaríamos de defender que a morte não precisa ser definitiva.

O que Deus advertira anteriormente em Gênesis 2.16,17 é visto de maneira chocante através do relato sequencial das mortes de todos os descendentes de Adão. Muitas pessoas podem ler os cinco primeiros capítulos de Gênesis e creditar a culpa do pecado e da morte a Adão. Mas o que importa não é de quem é a culpa, mas o fato de sabermos que a morte não é definitiva para aqueles que possuem comunhão com Deus.

Definir o antônimo de morte, “vida”, também não é uma tarefa fácil. Mas com certeza perder a vida não significa a perda das funções vitais do corpo humano. Vida, para Van Groninger, “não é o resultado de combinações e processos biológicos. É, antes, o resultado do desejo de Deus de criar por meio da sua vontade soberana, da palavra e do Espírito cooperador”. O autor vai além e desenvolve o conceito de vida ainda mais: […] a vida humana foi produzida para existir e continuar eternamente, […] deveria ser experimentada por uma existência consciente nos contextos social e cultural (…) sempre em comunhão com sua fonte: o Deus Vivo.

Se a vida é estar “plugado” na fonte de energia. A morte, “é a separação espiritual das personalidades humanas da sua fonte doadora e mantenedora de vida, o Deus vivo eterno”. Paul House afirma que a morte é “a penalidade reservada pela desobediência no Éden”. Defendemos este posicionamento: vida é ter comunhão com Deus e morte é a ausência desta comunhão.

Nos posicionar desta forma nos traz um outro problema: “Como entender a morte de tantos personagens bíblicos que tinham comunhão com Deus mas ainda assim morreram fisicamente?” O Novo Testamento lança luz sobre esta questão. O texto de Mateus 22.23-33, em especial o verso 32, nos lança luz sobre o assunto: “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó! Ele não é Deus de mortos, e sim de vivos”. Jesus proferiu estas palavras durante um embate com os saduceus que o evangelista afirma não crerem na ressurreição. Comentando o texto, D. A. Carson faz a seguinte observação: “Se Deus é o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó mesmo quando se dirige a Moisés cem anos depois da morte dos três primeiros patriarcas, então eles deviam estar vivos para ele (v. 32), ‘pois para ele todos vivem’ (Lc 20.38). Deus é o Deus eterno da aliança, por isso, é inconcebível que sua bênção cesse quando seu povo morre”.

A morte física é tão somente uma separação temporária do eleito antes que este possa receber um corpo glorificado e desfrute da comunhão eterna com o Pai. Jesus, nosso represente depois de Adão, triunfou sobre a morte a fim de garantir que um dia haveremos de ressuscitar como Ele também ressuscitou.

Mas voltemos a falar de Enoque. Seu nome significa “dedicado” ou “consagrado”, o que é extremamente apropriado para o personagem que “perambulava” com Deus, vemos que ele é honrado pelo autor da epístola aos hebreus na chamada “Galeria da Fé” (Hebreus 11) e também citado por Judas.

Enoque “retrata a intimidade, que é a essência da piedade veterotestamentária. Isto, e não o moralismo popularmente atribuído ao Velho Testamento, constitui terreno comum a Enoque, Noé e outras personalidades bíblicas”. Enoque e Noé se destacam em Gênesis 5 pois se relacionam com um outro personagem da história: Deus. É a sua ‘caminhada com Deus’ que explica porque Enoque não morreu. Ao andar com Deus, Enoque toma uma decisão contrária a que Adão tomou em 3.8, onde este opta por se esconder de Deus depois de haver pecado. Mas é a mesma atitude que Noé tem em 6.9. Também encontramos paralelos na narrativa de Abraão, quando em 17.1, Deus o exorta a andar em sua presença e ele afirma tê-lo obedecido em 24.40.

Olhando apenas para Gênesis 5 talvez não consigamos ver que a retomada do relacionamento com Deus é mediada exclusivamente por meio de Cristo. Vemos que andar com Deus, e por conta disto buscar a santificação é a solução para o pecado (que só acontecerá em definitivo quando formos glorificados). Caminhar com Deus e desfrutar de um relacionamento com Ele é uma atitude individual que não é transmitida geneticamente para os descendentes. O filho biológico de Enoque, Matusalém, também morreu como consequência do seu pecado em Adão. É através de Noé que Deus preservará a humanidade no episódio do Dilúvio e mais uma vez reafirma que a solução para o problema do pecado é andar com Deus.

Iavé nunca foi pego de surpresa pelo pecado de Adão, ele sempre teve um plano perfeito para dar cabo aos seus objetivos gloriosos. Esse plano nunca foi “esquecer” e/ou “perdoar” a dívida, pois se Ele assim fizesse estaria contradizendo sua natureza santíssima. Assim, ao longo de todo o capítulo 5 de Gênesis vemos a humanidade experimentar as consequências de sua rebelião contra o seu Criador.

No capítulo seis temos uma escalada do pecado a tal patamar que somos informados que a solução dada pelo Criador é destruir os homens que outrora foram criados. Ainda assim, a graça de Deus é vista no ato dele mesmo conservar para si uma linhagem que passa por Sete, Enoque, Noé e chega até os patriarcas: Abraão, Isaque e Jacó. Deus continua demonstrando o seu amor por esses homens ainda que estes não demonstrem o amarem de volta e preserva o seu povo mais uma vez no Egito e ainda depois do falecimento de Moisés e Josué.

A história segue por longos anos até o despontar de um novo tempo, a era escatológica que brilhou ao nascer Jesus, o Deus que se encarnou homem para reverter os efeitos do pecado de Adão, nosso primeiro pai. Cristo, o segundo Adão, é nosso novo representante judicial diante do Reto juiz e morreu em nosso lugar a morte que era nossa. Na cruz, Ele experimentou da agonia de estar afastado de Deus por alguns instantes e por fim pagou de uma vez por todas a dívida mortal que pesava contra toda a humanidade.

O Antigo Testamento é cheio de genealogias, no Novo elas são raras. A última vez que encontramos a narrativa de alguma genealogia nas Escrituras é quando Mateus e Lucas traçam a ascendência do Messias. Finalmente nos tornamos capazes de entender que “após Cristo não há mais nomes a serem citados. Ele é o fim de tudo, nosso destino. Todos somos chamados pelo nome dele: cristãos”.

A mitologia apocalíptica em torno do número “666”

A mitologia apocalíptica em torno do número “666”

Por Marcos Danilo de Almeida

 

O último livro da Bíblia, o Apocalipse, escrito pelo apóstolo João, é um prato cheio para quem gosta de encontrar significados ocultos escondidos na Bíblia. Além das Escrituras, por si só, serem o livro religioso mais intrigante já escrito, a temática do Apocalipse é a cereja do bolo para os curiosos acerca dos acontecimentos que ocorrerão nos últimos dias.

O objetivo deste artigo não é suscitar polêmicas, mas desmitificar o que chamamos de “mitologia apocalíptica”. A Doutrina Reforma não é famosa por ser “novelesca”, ou “hollywoodiana”, mas é conhecida sobretudo por seu apego às Sagradas Letras. No decurso das próximas linhas, tenhamos em mente a máxima da Confissão de Fé de Westminster de que “a Bíblia interpreta a Bíblia”.

O gênero literário em que foi escrito o livro de Apocalipse é muito peculiar, trata-se de um híbrido de literatura apocalíptica, profética e epistolar. O que faz com que não haja, segundo conclui Blomberg, “maneira alguma de predizer com antecedência até que ponto uma obra dessas será literal ou figurada”.[1]

Muito foi dito e especulado acerca do significado por trás do número “666”, cabe a nós olharmos para o texto bíblico onde ele é mencionado:

Vi ainda outra besta emergir da terra; possuía dois chifres, parecendo cordeiro, mas falava como dragão. […] A todos, os pequenos e os grandes, os ricos e os pobres, os livres e os escravos, faz que lhes seja dada certa marca sobre a mão direita ou sobre a fronte, para que ninguém possa comprar ou vender, senão aquele que tem a marca, o nome da besta ou o número do seu nome. Aqui está a sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, pois é número de homem. Ora, esse número é 666. Ap 13.11, 16-18 – ARA.

O contexto imediato deste texto começa no capítulo 12, e abrange a chamada “trindade satânica” que compreende o dragão (12.1-17), a primeira besta (13.1-10) e a segunda besta (13.11-18). Se você estranhou o nome “trindade” para nos referirmos a Satanás, lembre-se do que Paulo escreve aos coríntios: “E isso não é de admirar, pois até Satanás pode se disfarçar e ficar parecendo um anjo de luz (2Co 11.14 – NTLH)”.

Ter isso em mente é fundamental para entendermos o significado deste número. Sugiro que se faça uma leitura do início do capítulo 12 até aqui para que o leitor perceba a enorme quantidade de paralelos existentes entre a “trindade satânica” e a “trindade divina”. De modo semelhante, o selo da besta é a forma de Satanás imitar o selo que Deus pôs em seus filhos antes da grande Tribulação (Ap 7.3).

Voltando ao texto atentemos para algumas coisas. Ele fala de uma “certa marca” sobre a mão direita ou sobre a testa e fala também que ninguém pode comercializar sem a marca ou o nome da besta ou o número do seu nome. Percebam que são três as coisas que permitem comprar e vender e que o número “666” é apenas o número do seu nome, não necessariamente a marca da besta.

As línguas hebraica e grega fazem uso de letras para indicar numerais correspondentes. A sugestão mais antiga é que o número “666” diga respeito ao imperador romano Nero César (54 a 68 d.C.)[2], uma vez que a transliteração de seu nome, em hebraico, somando-se o valor correspondente de cada letra totaliza 666. Este exemplo já é suficiente para demonstrar quão temerário pode ser esse tipo de interpretação. Primeiro porque o Novo Testamento, inclusive o livro de Apocalipse, foi escrito em grego e segundo porque o nome do imperador precisou ser adaptado para a língua hebraica de uma maneira incomum a fim de que a soma desse certo.[3]

Hollywood ironiza a numerologia no filme “The Number 23”.[4] Neste filme, o protagonista, vivido por Jim Carrey, é atormentado por esse número onde quer que esteja. À medida que o filme avança o telespectador começa a sentir-se incomodado tamanha a “forçação de barra” que os roteiristas fazem para que o número 23 encaixe e esteja presente em absolutamente tudo em torno do protagonista. Segundo G. K. Beale, mais de cem nomes foram propostos só na Grã-Bretanha entre 1560 e 1830. Até o nome de Hitler já foi calculado para totalizar 666.[5] A imaginação do interprete desconhece limites.

Tendo isto em vista, toda tentativa de se atribuir valores numéricos ao nome de qualquer personagem contemporâneo ou associar a marca a qualquer artefato tecnológico da modernidade é perder de vista o simbolismo que João usou e que devia ser perfeitamente compreensível para seu público original.

Todavia, não há como ignorar o simbolismo de alguns números bastante utilizados por João no processo de escrita do Apocalipse. Um destes números é o número 7, considerado pelos judeus como o número da perfeição e, portanto, associado a Deus. Como o diabo tem a tendência de copiar e imitar a Deus, vemos no número 666 mais uma tentativa de ser como a trindade, mas sem nunca conseguir se igualar a ela por causa de sua completa imperfeição.

Uma curiosidade que o leitor pode achar interessante é que o sexto selo, a sexta trombeta e a sexta taça descrevem o juízo de Deus sobre os seguidores da besta. Ao passo que, o sétimo selo e a sétima taça descrevem juízos que resultam no estabelecimento do reino e a sétima trombeta descreve o reino eterno de Cristo.[6]

Por fim, o apóstolo João faz uma alerta, que deve servir para mim e para você nos dias que vivemos: “aqui está a sabedoria: aquele que tem entendimento calcule o número da besta”. Com isto João não está orientando e incentivando uma busca desenfreada por descobrir alguém que tenha as letras de seu nome somadas 666. A sabedoria consiste em discernir acerca do que é perfeito daquilo que é apenas uma cópia falsa e barata do que é verdadeiro.

Meus irmãos, não se deixem enganar. Ouçam a voz que ecoa das Sagradas Escrituras: “Este é o caminho, andai por ele (Is 30.21 – ARA)”.

[1] BLOMBERG, Craig L. Introdução de Atos a Apocalipse: uma pesquisa abrangente de Pentecostes a Patmos. Trad. Marcio Loureiro Redondo. São Paulo: Vida Nova, 2019. p. 666.

[2] Para saber mais recomendamos a leitura do verbete “Nero” em: TENNEY, Merrill C. (Org.). Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. Vol. 4. pp. 497-500.

[3] Para saber mais recomendamos a leitura de Craig L. Blomberg, op. cit, p. 704.

[4] Disponível em: <https://www.imdb.com/title/tt0481369/>.

[5] BEALE, G. K. Brado de vitória. Trad. Paulo Sérgio Gomes. São Paulo: Cultura Cristã, 2017. p. 287.

[6] BEALE, G. K. Op. cit. p. 288.